sábado, 30 de noviembre de 2013

Clarão de Fumaça


O quarto estava iluminado, quase incandescente, devido a uma contínua descarga elétrica que provinha de fora. Era uma manhã de junho e um vento úmido, pegajoso, soprava no ar carregado de melancolia do hospital, movendo bruscamente receitas de médicos e outros objetos leves, como animais inquietos antes da anunciada tempestade.

Lembro que pensei, ao acordar nessa manhã, no sonho que havia tido, nas mensagens que invadiram o meu espírito, igual que essa  brisa pegajosa, imprevisível, desgovernada, e grudaram em mim sem maiores considerações.

Com a mente submetida ao tempo, luz veloz, ninada pelo sonho, dopada pela morfina, pelas feridas, pelas constatações amargas, revisei o calendário dos meus anos. O meu coração voou sem amarres, sem relógios, apesar do corpo pesado, disposto a cruzar as barreiras da memória para aterrissar no centro dos meus medos. Pouco a pouco, apesar da vertigem, alcancei descobrir o lado positivo dos temores e os admiti amigos.

Em todos os dias de confinamento sempre estive rodeado de medos e de familiares; principalmente da minha mulher. Ela esteve cuidando-me, dinamizando as enfermeiras e discutindo com os médicos sobre o meu tratamento primeiro, logo sobre os avanços da medicina, da astronomia ou da nutrição. Sim, minha mulher tinha essa capacidade de passar de um assunto a outro com moderado cinismo. Não conhecia sobre tudo o que debatia, mas as suas palavras sorriam e sua convicção era tão sincera que conseguia obter a atenção, e até mesmo o consenso, de qualquer audiência.

Ao recordar sua voz agora, seus grandes olhos cor de mel se acendem para mim; vibrantes e infantis. Meus olhos aos seus se prendem, fascinados, e percebo que meus sentimentos por ela não mudaram, nem mesmo estando distantes. Amo-a hoje como a amei inúmeros dias, durante séculos, discreto, orientado por esses olhos solares cujos raios projetavam esperança, tinham o poder de iluminar ou apagar a minha alma segundo a intensidade do seu brilho. Assim como as nossas diferenças...
Ah, mulher obstinada, obstinadamente vaidosa como eu. Os nossos orgulhos muito chocaram-se, numa luta de poder permanente. Muitas vezes a odiei, fugi, a enfrentei. Não nessa manhã de junho, nossa última manhã  juntos.

Não enfrentei, nem a ela nem a ninguém, porque não pude. Por causa da tristeza, da impotência, da doença, o fato é que não pude gritar que os amava e que me aborreciam. Somente lancei meu olhar desesperado e fechei os punhos espasmódicamente, telegrafando sílabas infecundas.
Mas a essa altura eu já estava morto, já haviam me matado. Para meus filhos, que brigavam brutalmente pela herança, meu nome era apenas uma assinatura num documento rentável. E minha mulher estava tão concentrada em controlar a manada que não intuía meus chamados de socorro. Agora compreendo que ela também pedia socorro.

Então acionei as enfermeiras. Meu filho enlouqueceu de raiva; era candidato a um cargo político e um escândalo no hospital não o favoreceria nada. Saiu disparado, não sem antes fitar-me com desprezo. A minha filha atirou-se no sofá e começou a chorar, vitimizando-se. Minha mulher tocava-a o ombro, sem dizer palavra, e olhava a chuva que caia substituindo suas contidas lágrimas.

Presenciando essa cena como testemunha amordaçada, recordei a infância dos meus filhos, os esforços que fizemos, os erros que cometemos, tantos e inevitáveis. Lembrei de quando nos conhecemos, dos seus faróis de ouro que penetraram no meu metabolismo de imediato, alterando os meus batimentos cardíacos.
Mas nesse momento eles pareciam apagados, cinzentos, embaçados pelas lágrimas contidas, perdidos na sombra da amendoeira. Quanta solidão! Tão profunda que a conduziu, pobre companheira de riscos e risos, a um lugar inóspito, desconhecido.  Queria gritar: volta! preciso de você! mas ela ensurdeceu e eu esmoreci. E esse silêncio, essa cumplicidade na dor, tinha um poder estranhamente reconfortante.

A chuva caia e os pingos batiam nas folhas das árvores, fazendo um barulho semelhante ao tic-tac dos ponteiros do relógio. Caia como temporal de horas, de décadas, mudando tudo: convertendo em pó, misturando o barro, dissimulando as formas. Desabava e nos levava, a mim e a minha mulher, a mergulhar em nosso próprio sangue, a chegar ao mesmo útero, ao berço da criação de nossos filhos, a miúdo tão alheios a gente, procurando respostas. De repente minha mulher encarou o céu molhado da noite recém-nascida, fechou os olhos e santigou-se. Dedicou-me um olhar tangencial. Senti que me dizia que ainda  tínhamos um ao outro.

Minha filha, enquanto degustava o sentimento de mártir, se preparava pra ir embora: me beijou a mão raquítica, dedicou-me um olhar compassivo e orgulhoso- o fato de ser a única herdeira em visitar o progenitor diariamente muito lhe satisfazia e, como consequência,  acreditava ser melhor filha que seu irmão- afastou-se de minha cama e pediu dinheiro a minha mulher para não sei o quê. Não importa o motivo, sempre existia uma boa desculpa para recorrer ao infinito caixa privado.

Ficamos a sós. Ela e eu. Minha mulher, quem nunca foi muito organizada, desatou a arrumar o quarto com uma meticulosidade inusitada. Ia de um lado para o outro, uma formiguinha que pegava coisas, carregava e  guardava, preparando-se para um longo inverno. Eu observava, ansiando que ela percebesse o meu espanto.  Mas até que não guardou tudo e se aproximou da minha cama para esticar os lençóis, umas cinquenta vezes, não consegui chamar a sua atenção. Aproveitei esse momento e desandei a mexer os pés, esperneando como um moleque. Então encarou-me. Ah, esses grandes olhos de coruja, de mãe desperta, de gargalhada fácil e fé incorruptível, como sinto a falta deles... Pena que antes, ainda noivos, quando ia visitá-la na sua casa de noitinha após as minhas aulas de engenharia, não pude gritar para toda a vizinhança  o homem sortudo que eu era. Ainda não sabia. Há lições que duram uma eternidade.

Naturalmente não pude falar, era tarde. Acenei com a mão para que chegasse mais perto, perto do meu rosto. E sussurrei: Vai embora? Ela soltou uma gargalhada sonora. Vou embora pra onde?, me perguntou enquanto me tocava o rosto com golpes leves. Eu quero conversar com o seu médico amanhã de manhã. Você não vai se livrar de mim assim tão fácil! Vou dormir aqui de novo. Pode ficar tranquilo.

Fiquei portanto mais tranquilo. As seguintes horas foram plácidas. Não discutimos sobre a atitude dos nossos filhos e como podíamos corrigir a situação, como costumávamos fazer sem descanso. Felizmente o único som que pairava no ambiente era o eco de sua gargalhada que durou a tarde inteira, pelo menos na minha cabeça. Minha mulher assistia televisão e sorria com seus lábios dourados e seus enrugados olhos carnosos.

Jantamos a insípida comida hospitalar. Ela me contou algo da trama da novela das oito que eu não escutei, como de costume. Só a frase final do seu comentário pareceu-me relevante. Tá vendo Gustavo, afinal todas as famílias têm problemas... Nós cuidamos com amor dos nossos filhos. Sorrimos um para o outro, cúmplices. Porém não cúmplices na dor como antes relatei, senão no gesto de gratidão mútuo, produto de tantos anos de parceria e contenção. 

Eu estava fatalmente cansado e dormimos.

Acordei aqui, atrás desta parede transparente, como simples espectador. Não sei quanto tempo passou desde que cheguei, porque tenho a sensação de ter dormido várias semanas. Quando acordei notava-me lúcido, nada me doía, só a urgência de ter notícias da minha mulher.

Do outro lado desta parede posso distinguir apenas um clarão de fumaça, quartos e corpos já irreconhecíveis, sem fronteira nítida ou acepção física. Permaneço vigiando, cativo do magnetismo das emoções ainda vivas, preso à memória do coração, mais poderosa que a memória dos eventos. A ânsia de me despedir da minha mulher me conserva aqui; tento encontrá-la no meio da fumaça, ver seus olhos de coruja sentinela, mas é inútil.

Pode parecer loucura, caro leitor, mas tenho a sensação de tê-la bem perto, mesmo sem vê-la. E me esforço, vale a pena. E por isso lhes escrevo a minha história, acreditando que a força dos nossos pensamentos, o seu e o meu, poderá trazê-la de volta. Contudo a lastimável verdade, lhes confesso, é que os pensamentos morrem como tudo, transformam-se, misturam-se, dissimulados.

Despenco no chão, sem hálito, sem letras, sem boca. Umas lágrimas descem dos meus olhos inexistentes criando um sulco no ar e logo batem nos meus pés descalços de matéria, gerando um efeito calidoscópico que pinta subitamente o ambiente diáfano. De novo brancura e silêncio. De novo a sua voz.... Mas, cômo?! Do outro lado não há mais que fumaça. De onde vem essa voz? Realmente endoideci de vez.

A voz, ainda mais forte, insiste: Gustavo, estou aqui. Falei pra você que não iria se livrar de mim assim tão fácil!!  E do nada, do meu lado, minha velha companheira se instala com sua aura de sol
  

sábado, 9 de noviembre de 2013

Noite Vermelha

Luzes, música e conquista. Pessoas dancavam na pista, pavoneando a roupa de griffe, elaborando os seus gestos mais persuasivos. Ele passeava entre elas, sem misturar-se nesse cocktail de suor, álcool e branqueamento laser. Ele era diferente. Delicioso, nutritivo, como o azeite. De oliva, claro.
De longe, lambuzou meus desejos, meus sonhos. E essa ânsia pegajosa foi aumentando com o passar das horas, cozinhando-se no meu peito a fogo alto. Até que foi servido o prato: era amigo de uns amigos. Conversamos durante algum tempo, nao sei exatamente por quanto, mas realmente nao importa. A partir de um certo momento deixei de prestar atencao nas suas palavras, porque elas perderam a funcao original de comunicar. Calculo que por um mecanismo do meu inconsciente, passaram a ser um íma que me puxava aos seus lábios sem parar. Foi inevitável: quando tocou a minha cintura e sussurrou-me ao ouvido, quase pude distinguir os gritos que emitiam os nossos cheiros. E assim sucedeu o primeiro beijo, culminacao do instinto.
Beijou-me como um lobo faminto, selvagem. Fomos presas de beijos versáteis, picantes e suaves, compassados por seus dedos que cavavam minha pele; porém, em vez de produzir-lhe sulcos, a fizeram avermelhar-se, inchando-se como energia condensada.
Olhou-me. As minhas maos primeiro, ao esmalte violeta com brilhos estelares, aos nódulos e longitude dos meus dedos, as rugas de janeiros e atividades. Com seu olhar acariciou-me as extremidades, chacoalhando-me o corpo inteiro. Depois fitou-me profundo e direto. E mergulhei entre imensas montanhas cravadas no centro da terra; vivi uma expedicao através do seu globo ocular, repleto de fauna, flora, vida. Uma esfera reconhecidamente assustadora e irresistível.
Afinal, nessa noite vermelha, escutei o que me pediam seus olhos, seus beijos, meus anseios de infância e me entreguei ao amor, às circunstâncias.

jueves, 7 de noviembre de 2013

A mudanca


Ester observa, apoiada na porta de vidro aberta, os raios de luz que clareiam o Jacarandá do pátio vizinho, concedendo-lhe áureo mistério, uma aparência quase mística; essa luz também denuncia uma infinidade de insetos, que de tão minúsculos, se confundem com o pó e o pólen que flutuam no ar primaveril. Distingue o canto de quatro ou cinco pássaros, dentre os 270 tipos diferentes que habitam Buenos Aires, e celebra por dentro a vitória do belo sobre o feio,  já que esse canto dissimula o barulho dos prédios em construção. Nos Bosques de Palermo, a poucos quarteirões de distância, há árvores centenárias onde canários, bem-te-vis e catorras alinham-se, formando um coro de louvor diário.  A combinação dessas notas é um instinto que materializa-se em música, analisa Ester com os ouvidos cativos. Um instinto, código armazenado, base de vozes inconscientes que se entrelaçam, mas que logo, irremediavelmente, continuarão por caminhos distintos. É lógico, pensa, assim funciona a vida, em constante simbiose: o caso do sol e da lua que sempre caminham em paralelo, porque um não existe sem o outro. Talvez por isso- seu pensamento se detém por um instante, temeroso- sinto que nasço e morro diariamente, porque a morte e a vida são linhas perpendiculares, forças complementares.
Ela atravessa a porta de vidro intoxicada pelos gases do seu pensar vertiginoso. Já na pequena varanda do apartamento, coloca-se em frente a um vaso retangular de cerâmica. Começa a mexer na terra. Suas mãos apresentam uma sensibilidade acidental, portanto a terra, de repente, parece embrenhar-se na sua epiderme, transformando-a. Esfrega os dedos procurando as ocultas marcas digitais. Só a brisa que sopra- rajadas de vento inesperadas, selo de Buenos Aires- é capaz de trazê-la de volta à este momento, à sua diminuta varanda. Acaricia o bonsai que repousa no vaso, pega a tesoura e começa a podá-lo cuidadosamente.
Esta árvore foi um presente de uma sábia amiga brasileiro-japonesa. Elas se conheceram em uns encontros de meditação no bairro de Palermo e Nikito inspirou-lhe de cara enorme paz, ensinou-lhe muito sobre a virtude da paciência ao longo dos últimos três anos. Decide ligar pra ela:
- Oi querida! Tudo bom?
- Olá amiga, tudo ótimo! Agora tô saindo pra pegar o Lucas no colégio. Lembra que ele hoje apresentava o projeto de química ao comitê de professores? Pois é, ele me ligou dizendo que tudo correu muito bem e que acredita que obterá a nota que precisa pra passar de ano! Tô super feliz!
- Que maravilha! Eu sabia que o Lucas ia se sair bem. Ele é muito inteligente.
- Mas diga lá, e você, tudo bem? Como vão os trâmites da mudança?
- Ai, sabe como é que é... Muita papelada, além do trabalhão que dá vender todas as coisas que tenho. Não vale a pena pagar excesso de bagagem pra levar pertences inúteis...
- Lógico. Eu posso te ajudar com o que você precisar. Conte comigo, já sabe! Caramba, vou chegar atrasada. Devo desligar. Posso te ligar mais tarde?
- Sim, sim, vai lá. Depois a gente conversa
Ester começa a fazer uma xícara de chá detox de melão, gengibre, eucalipto e mel, um dos seus sabores favoritos. Costuma tomá-lo em ocasiões de comemoração: está feliz em saber que o Lucas se destacou.
Senta-se no único puf que restou na sala, com a xícara na mão, e olha ao redor. Sua casa, antes armada com as mobílias certas, as cores ideais, agora é um deserto de úmidas lembranças. Uma solidão indescritível invade seu peito e chora como uma criança
Saindo à superfície desse poço, ergue seus ombros e encosta o couro cabeludo na parede, no meio de um quadro branco com moldura preta, uma espécie de obra de tempo, restos y permanência. Recorda as últimas semanas, a correria, os encontros farewell organizados, a amável e triste Nora que comprou-lhe diversos artigos usados; praticamente a sala inteirinha. Nora chegou com o nariz quase colado ao pescoço: dava pena. Quando se atreveu a olhar pra cima, o primeiro que perguntou foi porque a Ester mudava de país, cuspindo sílabas suplicantes. Ester respondeu que mudava-se por causa da família e tratou de mostrar-se contente. Nora forçou um sorriso mentiroso, apoiou as mãos calejadas sobre a barra da cozinha e dedicou-lhe um olhar morto. Então a Ester notou que ela precisava constatar, na verdade, se alguém mais passava por uma mudança drástica e inesperada; precisava não sentir-se só na desgraça. Concluindo Nora, enquanto contidas lágrimas se formavam em seus olhos, afirmou: somente podemos contar com a família e os amigos... Nunca com os homens. Acredito que o seu retorno à casa é positivo.
Ester sorriu, basicamente porque não sabia o que dizer, melhor dito, não sabia se podia dizer algo mais. Nora interpretou o seu sorriso como um consenso, ou simplesmente não se conteve mais, e acabou despejando - falou com tanta urgência que mais parecia vomitar- que havia terminado com o seu namorado, com o qual levava apenas um ano de convivência, e sentia-se culpada, frustrada, pelo fato de terem durado tão pouco como matrimônio, depois de quase dez anos de relacionamento. Ester, torcendo pra finalizar a conversa, sussurra: tudo é um processo, portanto a novidade é necessária e sempre proveitosa. Sussurrou sem pensar, como que tirando um papel do bolso e recitando o que estava escrito por outra pessoa. Foi uma situação muito constrangedora. A Nora, do nada, abraçou-a com tanta força que quase quebrou-lhe as costelas. Contudo Ester sentiu-se útil, satisfeita de ter contribuído, sem saber exatamente o alcance de sua contribuição.

Com a xícara na mão, acreditando que os atos valem mais que mil palavras, remói que a palavra bem intencionada, no momento certo, faz uma grande diferença. Quantas vezes dizemos realmente o que os outros precisam escutar, em um ato de doação genuíno? Sem que a mensagem veja-se tingida de raiva, temor ou orgulho? ... É, dizer a palavra certa  sem esperar nada em troca, sem nenhum rastro da natural contaminação oriunda do conhecer-se, das desconfianças latentes, dos desejos encontrados, é todo um desafio...

Obcecada com a ideia, Ester bebe o chá tão rápido que termina engasgando-se. Preciso tomar ar fresco, pensa, então pega a bicicleta e se dirige aos Bosques de Palermo.

O céu está desbotando-se, regenerando-se, morrendo para renascer como céu novamente. Ela sente a sua caixa torácica ampliada e uma sensação desconcertante enquanto pedala,  porque experimenta, intensamente, uma liberdade sem rosto, sem forma: assustadora.  
Circula devagar,  em volta do lago, saboreando a débil luz que o ilumina. Há uma entidade que paira invisível sobre o topo de palos borrachos, sauces, palmeras e tipas, árvores que moram na ilha, e sobre seu coração alvoroçado. Pára de pedalar, se senta em um dos bancos e, ainda com palpitações, contempla os cisnes que atravessam o asfalto.  Que loucura! Vão morrer atropelados! grita internamente. Entretanto os cisnes, apesar do receio, conseguem chegar ilesos e aterrissam na água com uma pompa só compatível, segundo a lógica, com um estado de inconsciência diante do perigo. 
Enquanto recobra-se do susto, percebe novamente essa presença, esse espectro representado pelo sol, água trêmula, animais, vento, almas em pena. Presença que a acende, intuição cintilante, invisível, abrangente. Adoraria saber voar para chegar bem alto, cruzar a estratosfera se preciso, e assim verificar se essa presença acaba, tem um formato e um caminho.

Faz frio nas tardes de primavera em Buenos Aires. O canto dos pássaros, o baile das flores, aquieta-se, e o parque parece um mágico cartão postal. Ester pega a bicicleta, com intenção de regressar à casa, mas começa a dar voltas sem destino.  Por um momento dúvida  se o apartamento onde passou os últimos anos de sua vida é ainda seu lar. Hoje é um espaço semi-vazio, lugar onde ontem a solidão vivia acompanhada pelos livros, pela imaginação, pelos amigos. Agora ela vaga sozinha entre o resto de coisas e memória.

Pedala com sofreguidão, parindo lágrimas contra o vento, até que, no meio de atribulados pensamentos, ela lembra da visita agendada com os compradores da cama. Deve retornar ao apartamento quanto antes.

O casal jovem chega pontual ao encontro. Já estão na porta do prédio quando a Ester aparece.  A mulher carrega uma neném lindíssima, dona de umas bochechas rosadas, uns olhos puxados de mapuche e um cabelo grosso como o solo lunar. A neném sorri-lhe e a Ester encara a mãe da criatura com expressão de ingenuidade, procurando aprovação no rosto dela para acariciar a sua filha. Durante o percurso da visita, Ester presta mais atenção às caretas, brincadeiras e jogos que o pai efetua e a bebê retribui, convulsionando-se no colo da mãe e observa a conduta da criança, que naturalmente desconhece o lugar mas não o rejeita por isso, ao contrário, se interessa em explorá-lo. E pensa, uma criatura tão nova, pura, que ignora razões, é uma folha em branco que contêm conceitos de instinto e fé, sem vestígios de dialética.
Logo observa os pais. Um casal em agradável sintonia: ela, com sua fala amorosa e singela, e ele, viril protetor, cujos olhos exclamam admiração ao se encontrar com os dela.  
Concluídas as transações comerciais de praxe, o casal vai embora. Ester está contente como se houvesse recebido amigos em casa, grato costume que a preenche. Nota que a harmonia dessas pessoas a contagiou, e outra vez  afirma que é talvez suscetível demais aos problemas alheios.  Aliás, fazendo jus a sua afirmação, bate com a palma da mão na testa e diz: tenho que finalizar a proposta, esse interminável Business Case, para que, de uma vez, possamos reestruturar a equipe. 
Senta-se no puf, pega o computador e deposita-o sobre as pernas. Abre o Outlook porque deve consultar um email para desenvolver a proposta. Na caixa de entrada vê uma mensagem da sua chefe cujo título indica Move to Brazil e decide abri-la em seguida.
O espanto que paulatinamente vai  se revelando no rosto de Ester é desconcertante para mim, como narrador: provoca-me uma pena infinita e embaralha os meus pensamentos, fazendo-os um maçarico de impotência. Mas prossigo, sou apenas um comunicador.
O fato é que a Ester desaba por completo: até as rugas do seu rosto tornam-se mais profundas por conta das lágrimas que as navegam como rios caudalosos. Neste momento, curiosamente, lembra da Nora, da sua vulnerabilidade, e deseja ligar pra ela, gritar que ela não está sozinha, que ninguém está imune a decepção.
Toca o telefone. Ester não atende, levanta-se e vai ao banheiro pra lavar o rosto. O telefona toca de novo. Desta vez a Ester atende.
- Alô, diz com a voz rouca
- Oi lindona, tudo bom? Tá com a voz estranha...
- Oi amiga, desculpa, tô bem chateada viu... Recebi um email da minha chefe dizendo que ela cometeu um erro ao me afirmar que o salário que me ofereceu não era líquido e sim bruto.
- Quê?! Ui... então isso significa que você vai ganhar bem menos do que esperava, né? Quanto é o que descontam mesmo de INSS, IRPF, etc?
- 39% mais ou menos...
- Nossa! Pra que depois os nossos políticos, corruptos, roubem tudo no lugar de investir em educação e saúde. Ai, quê vergonha Senhor! Lamenta Nikito.
-Bom, mas agora o importante é entender a sua situação amiga, o que você vai fazer? Vai voltar  para o Brasil mesmo assim?
Ester,  primeiro diz não saber, logo xinga a sua chefe, a sua empresa, brama frases desconectas, até que, subjugando sua própria indignação, acaba por afirmar que não tem mais remédio que aceitar e se cala. Nikito fica em silêncio, esperando uma nova rajada de palavras doloridas e terapêuticas.  E, efetivamente, ela continua. 
- Para quê tudo isso?! Afinal vou morar no Brasil ganhando pior que na Argentina. Não tem cabimento...

A Nikito propositalmente muda de assunto, compreendendo que a Ester não tem escolha e portanto é melhor não aprofundar no ocorrido.
- Como foi a aniversário do seu sobrinho? Vi algumas fotos postadas no Facebook. Ele estava muito fofo. É impressionante como o tempo passa... O vi nascer e ele já tá enorme menina!
- Pois é... Em pensar que há apenas um ano e meio ainda engatinhava. As crianças me estimulam muito: elas crescem, sem intenção, sem travas. Também sem volta atrás. O tempo é invencível...
- Invencível e relativo, Ester. O tempo também é filho das decisões individuais, das aprendizagens percebidas.
Ester medita por uns instantes e cita o que lhe ocorreu no parque
- Você sabe que eu sempre gostei de pedalar, da sensação do vento no meu rosto. Pois bem, há poucas horas, quando fui com a bicicleta passear no parque, senti desconforto por causa do vento, da liberdade indivisível que ele me produz. Uma forte angústia me possuiu, como se essas rajadas em vez de soprar-me pra frente, tentassem me derrubar da bicicleta, arrojando-me num abismo desconhecido. 
- Talvez porque o vento continue soprando, continue sendo um estímulo pra você, só que agora ele sopra em outra direção. Mas ninguém diz que isso é necessariamente ruim
- Bom, sentir angústia não é muito agradável...
- A febre não é prazerosa porém serve para indicar alguma infecção no corpo. Sem ela não haveria chance de mudar o curso da doença.
Ester se irrita bastante. Não está para bate papo karmático neste momento.
- Nikito, desculpe, mas agora eu só consigo sentir raiva. Sinto-me enganada. Quê diabo de febre é essa?! O que eu tenho é um mal milenário e humano, simples sintoma de uma injustiça...
- ok, compreendo. Mas lembre-se então dos motivos que te levaram a pedir a transferência para o Brasil.
- Tá bom, tá bom... Querida, vou desligar. Vou tomar um banho e relaxar um pouco. Pelo menos o chuveiro não foi retirado! Ester brinca, com magoado sarcasmo
Pega o computador novamente.  Olha as fotos do seu sobrinho no Facebook.  Sente dor de cabeça. Levanta-se e se dirige ao quarto. Encara-se na porta espelhada do armário embutido. Vê os seus olhos inchados, as rugas na testa e pensa, gostaria de renovar o guarda-roupa... Qual é o meu estilo? Recorda de todos os tipos de roupa que já vestiu, as modas que viveu, como se sentia em cada etapa, como essas roupas a descreviam. Reflete sobre como veste-se hoje e sobre o que transmite à sociedade. Qual é o meu lugar no mundo?, é a ideia que acaba por se instalar na sua cabeça dolorida.
Retorna ao computador, olha as fotos do sobrinho no Facebook e sorri. Lembra da sua infância, embaixo da Laranjeira, vendo o pai jogar futebol ; da sua adolescência, nas horas que passava escutando a música da mãe, lendo as letras em inglês ou espanhol, tentando aprendê-las com o dicionário ao lado; dos poemas que escreveu para o primeiro namorado, aquele amor tóxico que a perturbou durante décadas. Uma vontade súbita de escutar música a impregna, então abre o YouTube e acha um vídeo sugerido. Clica no vídeo; trata-se de um show ao vivo do cantor de salsa, Óscar de León, em Cali, Colombia. O cantor, com todo seu swing natural, sacode os quadris e os ombros exorcizando energia em cada canto do corpo. A canção que toca, Llorarás , a transporta aos seus vinte e poucos anos em Madri, àqueles clubes de salsa, àquele amor ideal e veemente. E assim sua consciência degusta as estáticas cenas, as palavras antigas, o papel protagonista e os silêncios antagônicos. Outra vez a imagem da Nora mistura-se com seus demônios, penetra nos  poros de sua mente. Os seus lábios esticam-se de leve e sua língua remexe na boca, saboreando a doçura de pretéritas auroras. Toca a campainha. Ester atende.

Flávia está parada na porta do prédio, enquanto um opala preto a espera do outro lado da calçada. Ester e Flávia sobem as escadas até o primeiro D. Ester nota que ela tem dificuldades de subir os degraus, já que a ouve queixando-se de dor nas costas. E fica desconfiada pelo homem que não se ofereceu para ajudar a carregar tanta tralha. Ele é o seu maridoFlavia responde que sim, com a cabeça baixa.  
- E não vai ajudar? 
-Ele não queria que eu viesse...
- Por quê?
-Porque tá sem emprego e não aceita que eu compre as coisas da casa.

-Hum, situação chata né... Faz muito tempo que ele tá desempregado?
- Uns cinco anos pelo menos. A gente se apanha com o meu salário de recepcionista e com essas ajuda do governo. O meu marido teve um acidente, sabe, e ficó sem poder trabalha. Mas o probrema agora é otro senhora... O probrema é o buteco do lado de casa. Graças a Deus tenho um patrão muito bom. Ele é pediata, pedriata, sei lá; atende a molecada. Ele é tão bom que tá me ajudando com a gravidez assim não tenho que gasta dinheiro com remédio, nem médico.
- Você tá grávida?! Não tinha nem reparado! De quantos meses?
- Acho que tô de cinco. 
- Nossa... Você não engordou nada...
- É... Diz o meu patrão que é por causa do estres, que eu como mal. Vou seguir a dieta que ele mandou. Por isso que eu quero o liquificador que a senhora tá vendendo... Quanto é que é mermo?
-  Bom, o que mais você vai comprar? Talvez eu possa  fazer um desconto extra.
- Só posso comprar agora a cômoda, o liquificador e o armário branco do banhero.
- Tá bom. O liquidificador vai de presente. 
- Nem sei como lhe agradecer... despeja Flávia, incrédula por tanta generosidade.
- Não tem nada que agradecer. A verdade é que fico feliz em que você e seu filho tirem melhor proveito do liquidificador do que eu. Mas diga lá: como vamos descer a cômoda sozinhas? Você está grávida e não convém que carregue peso assim.
Flávia sacode os ombros. Ester hesita em indagar mas afinal reitera: posso pedir ajuda ao seu marido?
Flávia estremece inteira mas não parece abalada pela pergunta, porque no fundo deseja que alguém sugira o que a Ester sugeriu, o que ela não tem coragem de reclamar. Então balança afirmativamente a cabeça.
Descem juntas, Ester carrega o armário pequeno de banheiro e a Flávia o liquidificador. O marido, um homem tosco e agigantado, está de pé, encostado no opala preto com cara de poucos amigos. A rua está movimentada, são oito horas e as pessoas, depois do trabalho, estão nos supermercados, nas lojas do bairro; os passarinhos dormem e as buzinas perturbam, sempre acordadas.

O marido dirige a Flávia um olhar alarmante e abre a mala do carro sem vontade. Ester sente um pequeno arrepio na espinha. O marido a cumprimenta secamente, pede que deixe o armário branco no chão da rua e logo arranca o liquidificador das mãos da Flávia. Ester retém os impropérios que povoam a sua boca quando ao elevar seu olhar do chão, ao passá-lo ao longo das canelas e braços da Flávia, percebe vários hematomas impressos no corpo dela. Parecem-lhe marcas de agressão física e vendo a atitude do marido, as atribui aos seus ataques de fúria. Mas não fala nada. Observa o casal e pode sentir o medo que vibra em cada gesto da Flávia. Só quer que retirem a cômoda, então diz de supetão: o senhor me desculpe mas preciso que me ajude a descer a cômoda. O marido tira a cabeça bruscamente de dentro do porta-malas, olha de imediato à Flávia e responde: tô com pressa senhora. A Ester olha para a Flávia, vara verde com lábios franzidos e olhos cheios d'água, então decide que eles devem ir embora porque não quer gerar maior confusão.
Tudo bem. Talvez vocês possam voltar outro dia, diz Ester. O marido assente e logo faz um gesto com a cabeça ordenando à Flávia que entre no carro. A Ester acompanha a situação, com um certo tremor nas pernas. Não me pagaram, pensa ao mesmo tempo que vê o marido apertando o braço da Flávia, já no banco do carona. Melhor deixar pra lá, melhor chamar a polícia. Chau! Acena enquanto o opala sai disparado, sem parar nos cruzamentos, sem se despedir. Tenta ler a placa: é inútil, está deteriorada, ilegível.

Ester entra no apartamento e se dirige diretamente ao bonsai. Seu coração ainda bate acelerado e fica pensando no que deveria ter feito. Todo esse desgaste a deixa faminta, então sai pra comprar comida. Esperando a preparação da salada que pediu, justifica-se internamente pelo fato de não ter tomado uma atitude diante do verdugo. Fiquei travada... Sabe-se lá o que esse cara é capaz de fazer. Talvez fosse até pior pra Flávia se eu me intrometesse... Preciso contar isso pra Nikito, pensa. Volta pra casa correndo e liga pra ela:
- Oi amiga, já tá dormindo? Desculpa, talvez seja um pouco tarde...
- Tudo bem. O Lucas já tá dormindo e eu to me preparando pra dormir. O que houve? 
Ester conta o episódio da Flávia e do marido, dividindo o sentimento de culpa que a consome. 
- Você tinha marcado com eles?
- Sim, mas tinha esquecido completamente. Achei muito estranho o cara não ter subido pra ajudá-la e quando vi a reação dele na porta do meu prédio, senti raiva e medo. Não sei como a Flávia suporta isso!
- Pois é... E é ela quem ganha o dinheiro. Quem sabe quais são os seus motivos?...
- Fico pensando nessas pessoas: na Nora- lembra da mulher triste que me abraçou?- no casal apaixonado e sua bebê com feições de índia, e agora, no terrível drama da Flávia... Que complicadas são as relações humanas!!
- Principalmente porque não sabemos o que queremos e tomamos decisões, as vezes, daninhas.
- Fiquei com muita pena dela...
- Você pelo menos a beneficiou com os artigos grátis que levou. O resto é livre arbítrio, dizem... Aliás, já vendeu tudo?
- Falta pouca coisa. Tô viajando depois de amanha. Você vai me levar no aeroporto afinal?
- Levo sim. Vou com o Lucas. Nikito boceja e diz, Amiga, vamos descansar, a gente se fala amanha.

Passam os dois dias num piscar de olhos. Finalmente a Ester está no Brasil. Há de viajar do Rio de Janeiro a São Paulo para assinar uma papelada. No aeroporto de Santos Dumont, já na porta de embarque, encontra-se surpreendentemente com o seu primeiro grande amor: Sérgio. Durante o vôo fica sabendo que ele está divorciado, tem uma filha, que seguiu com o negócio familiar. Saem pra jantar nesta mesma noite e acabam dormindo juntos.

Ester, ao retornar de São Paulo, procura desesperada os poemas que escreveu na adolescência, aspirando sustentar as imagens borradas que perambulam na sua cabeça e se misturam com o cheiro, o sabor do Sérgio, todavia incrustados no seu corpo. Durante o último encontro, a chama do passado reacendeu no seu peito e iluminou o seu ventre, os corpos sem jeito, esse momento perene. Mas, como sempre, sopra o vento arrastando dias, eventos, tentativas; eliminando certezas e velharias. 

Ester afinal assina o contrato com a empresa, apesar da desmotivação que sente. Ultimamente, não tem vontade de nada, está muito cansada, e o atribui à recente mudança.  Passam os seguintes dois meses desde sua chegada, a Ester focada na família e num projeto pessoal. Até que um dia se sente mal e desconfia. Vai até a farmácia. Volta para casa e se tranca no banheiro. Com um ataque de gargalhadas e pranto, se mete no chuveiro. 
Sai molhada- sente um calor insuportável- e desde a porta, vê o bonsai no novo canteiro. Nota que lhe nascem novos galhos e sorri entusiasmada. Se enxuga um pouco e pega o telefone:
- Oi Nikito! Amiga, pode falar? Tenho que te contar uma super notícia... Tá sentada? 
- Ai, ai, não me assusta. Fala logo!
- Eu tava me sentido mal e fui à farmácia. Lembra do encontro com o Sérgio?
- Sim, e dai?! O que tem a ver?!
- E daí, querida, é que eu acho que tô grávida

FIM

lunes, 14 de octubre de 2013

Memoria y Vigilia

El mar toca mis dedos
arreciando el miedo
que nace en mi talón.

Moja mis piernas con
recuerdos, auroras,
rostros, voces, olas
flujo del pensamiento

Entonces llega el viento,
suave peina la espuma
luego se alza y curva
abrazando el océano.

Sé que el aire me guía
soplándome secretos
que me invitan a volar

Porque siento cosquillas
por todo mi cuerpo
como si fuera de pronto
una ruta de hormigas

El cuerpo reacciona,
mientras el alma llora
porque el mar le arroja
a lo que fue para el mundo

Pero aún con los pies presos
en la arena del pasado
surgen en mis omóplatos
dos curiosas alas

Así que encaro el segundo
me subo al voluble viento
para permanecer siendo
memoria y vigilia

domingo, 6 de octubre de 2013

Guerra ou dança

A vida é guerra ou dança?

Uma valsa romântica
Um tango nostálgico

Um flamenco apaixonado
ou um cinza, lamentável
lança-rojão?

São pés compassados ou
tiros espalhados?

Movem-se os corpos
segundo a marcha fúnebre de Chopin
ou a estação colorida de Vivaldi?

Qual é a música que toca,
essa canção de mundo,
gemidos do moribundo
ou risos do coração?

Risos, notas musicais
batimentos essenciais
em allegro ou adagio
ecoam no salão...

Mas a pergunta
ainda não foi respondida
ela ainda fica
vagando entre pés e mãos

Será a vida uma guerra
evidente e singela
que sustenta a história
e a reclama na memória?

Será que o homem
apesar de tanta fome
prefere o ressentimento
ainda hoje, ao perdão?

Mas a pergunta
ainda não foi respondida
ela ainda fica
vagando entre pés e mãos





sábado, 5 de octubre de 2013

Sentido

O homem sorri ao céu
com lábios de meia lua
e olhos de entardecer

Exposto a noites e dias,
estiagem, chuvisca,
mormaço, ventania;
ele sorri

Estica com prazer
todas as rugas do rosto
olhando pra cima, devoto
sente o vento correr;

tocar o seu corpo esguío
com esses dedos vazios
que o fazem estremecer

Tocá-lo de um jeito
semelhante ao efeito
da pele no mar frio

Como um amplo leque,
abana os cantos de pele,
maré que sobe e desce
dentro do peito

Toca-o em suas raízes,
as mesmas cicatrizes
com um sopro seco

Porque é labareda,
intensa chama acesa
sobre água estancada

Como mãos de amante,
suadas e vibrantes;
Como o sábio rio,
preserva seu caminho

Ele vê o céu colorido,
aberto aos estímulos
desse vento passageiro

Sorri, já é outro janeiro
e o vento companheiro
seduz aos seus sentidos

sábado, 14 de septiembre de 2013

Mundo acallado

Soñé durante varias noches
con un triángulo;*
un polígono difuminado
un monte encapotado
una pirámide.

No tenía tres lados:
le faltaba una pierna;
un ángulo cojo
un círculo sin ojo
un papel sin letras.

Un papel que colgaba
del vértice inacabado
luego caía inerte
y lloraba amargo

Sus lágrimas corroían
los pictogramas
-confusos anagramas-
de la tablilla de Kish**;
signos en piedra caliza,
-padre de las sílabas-
hallaban su fin

De repente llegaba el
silencio; denso
como lodo; pantano
deforme, tosco;
hendidura entre tierra
y cielo

?Sería la nada mitológica,
guía de seres divinos,
que conducía al olvido
a Homero y a Ovidio?

?Caos, sin luz o referencia,
noches sin descendencia
los condenaba al vacío?

?Qué sería de los mitos
las bíblias, los libros,
cuadernos, pergaminos,
de la historia y sus anhelos?

Soñé despierta, nocturna
un mundo sin escritura
carente de poetas y lunas,
ignoto y desabrido

*Triángulo semiótico:
En esencia, se trata en buena parte de términos equivalentes que en el lenguaje de la tradición filosófica significan:
•El significante (o símbolo o nombre), es decir, el sonido de las palabras, el dibujo de una imagen; en resumen: el signo en su aspecto físico y concreto.
•El significado, lo que en la filosofía se ha denominado siempre : es decir, la noción, la idea, la vertiente mental, la parte conceptual de un signo.
•La cosa o referente, la parte de la naturaleza a la que el signo se puede referir. En efecto, para definir un signo son suficientes el significante y el significado. Pero el signo puede tener también una referencia en la realidad, precisamente con un referente.


**Tablilla de Kish:
La tablilla de Kish se encuentra cubierta de escritura cuneiforme, y es considerada la muestra más antigua de esta escritura.[1] La escritura es puramente pictográfica, y representa a una etapa de transición entre la protoescritura y la emergencia de un silabario

sábado, 7 de septiembre de 2013

El puerto seguro

Me apoyé en la ventana
para contemplar la bahía,
repleta de veleros;
una gran boca abierta
tragaba las mercancías
del pobre embarcadero

El cielo,
preso a un azul infinito,
contrastaba con los colores
que teñían mi pensamiento

"?Te gusta?", preguntó Alberto

?Qué decir? No sabía;
Una lengua sin sabores
amargaba el ánsia muda.

De pronto recordé a Neruda;
un verso, una frase decía:
"a casarse, peces del mar"

El océano, sin tiento,
zumbaba en mi cabeza
como turbina nuclear.

Observé adentro:
el piso de tabla flotante,
las paredes asfixiantes
del departamento vacío

Ví la luz solar reflejada
en el blanco denigrante
y sentí cierto hastío

Traté de amarrar todo,
ese nido con un nudo,
un lazo vulgar y duro
como el ocho marinero

Encajé cuatros elementos
en el espacio reducido;
imaginé rosas y mirtos
brotando del seco suelo

"?Te gusta?", preguntó Alberto

Nuevamente miré la ventana
y unas incontrolables ganas
me invitaban a navegar:
la paz inquieta del cuadro,
los altos montes, el marco
que bordeaba la costa

Quizás pudiesen desvelar,
desde su benéfica altura,
el secreto que la línea oscura
esconde detrás del horizonte

Mar, vida, cueva, muerte,
morada de cachalotes
y grabados de Altamira

Antigua cueva, postigo,
hombre, legado póstumo,
perpetua Pantomima

"?Te gusta?", insistió Alberto

?Qué decir? No sabía;
una lengua sin respuesta
lamía viejas heridas

?Habrán dicho "sí",
tan rápidamente,
aquellos bravos soldados
que arriesgaron sus vidas?

?Habrán, así, ignorado
su instinto inconsciente
cuando fueron a Normandia?

Observé adentro;
quería que las paredes de cal
se disolvieran en polvo de oro
y penetrasen en el mar,
en mi cuerpo;
que hincaran en mis entrañas
sus astillazos dorados
y ya la carne:
un conjuro quebrado

"?Te gusta o no?", insistió Alberto

!Bumbum! Brameaban las olas
al golpear la proa
del buque de guerra

!Runrun! Gritaba el ciclón
en cada rincón
del azul planeta

Respiré la vasta mañana
y cerré la ventana:
"Sí, Alberto, me gusta"

jueves, 29 de agosto de 2013

Enjaulado

El pájaro se lanza
con sus alas magulladas
contra el hierro caliente.

Casi ya no tiene plumas,
las perdió en esas batallas
labradas por su libertad

Tampoco canta, sólo gime,
lamenta por las mañanas
mientras el sol esgrime
rayos que lo hieren;

Pues recuerda la melodía
que sonaba al nacer el día
y que lo hacía cantar;

La que silbaba, antes,
cuando planeaba 
con el cuerpo a merced
de las caricias del viento

Entonces vuelve a creer,
presto a un nuevo intento

Armado del sentir reprimido
golpea a las barras resistentes
pero su cuerpo enclenque
cae ao suelo rendido;

La luz apuñala su pecho,
y sus oídos están al acecho
de la emotiva canción

Así echado, suavemente
deja de luchar y siente
que su carne desvanece
pero nunca su corazón

sábado, 24 de agosto de 2013

As vozes do dia

As vozes do dia
na consciência desatenta
são um eco motriz

Essas vozes na mente,
são gestos do corpo,
ora velhos ou novos,
e sempre fixam raíz

E já firmes na cabeça,
formam uma trama de retalhos
que espalha os seus galhos
em volta do coração

Mas ainda com ar escasso
aceso entre os abraços
o coração bate insistente

Mesmo sujeito a existência
aferra-se a sua essência
que é ser diligente

Não se julga escravo
embora seja cerceado
já que é pai da emoção

martes, 13 de agosto de 2013

La herencia

Catarina está sentada en un banco de madera, en el patio de su casa, observando el agua dulce que baja de los canales superiores hasta el aljibe; reflexiona sobre esos pequeños riachuelos cuyo destino final es convertirse en una masa pareja, sin identidad. Suena el timbre, se levanta y vuelve a los pocos segundos sosteniendo una carpeta. La carpeta dispone de fundas de plástico, todas ocupadas con hojas amarillentas. Saca una hoja de una funda y la estira con sumo cuidado, como si tratara de eternizar, con su delicadeza, el eco de las palabras escritas, de las sensaciones recreadas, del pasado también ajeno.

Revisa hoja por hoja, concentrada en absorver cualquier detalle que antes no notara. En el proceso se depara con uno de sus poemas favoritos. Su vista rebota en el papel y la angustia se despierta en su memoria. Cierra los ojos por un momento, inspira profundamente y vuelve su cabeza de repente hacia el medio del patio, dónde se escucha el abrupto movimiento de las ramas del Jacarandá.
Avista a un hombre apuesto, un poco más joven que ella, apoyado en el árbol.

-Buenas Tardes, soy Don Daniel. Perdone si le asusté.
-Todo bien. Estaba inmersa en recuerdos, no me había dado cuenta que ya había llegado. Quería esperarlo aquí, en mi lugar preferido de la casa ¿Le gusta?-
- Este patio es muy pintoresco, una verdadera joya de la arquitectura porteña-

Daniel contempla el entorno por unos segundos, meditativo. Se escucha el discreto fluir del agua mezclado con el bullicio de la avenida vecina. Catarina lo observa expectante, hasta que, de pronto, él dispara:

- Como la joya que usted parece tener entre manos: algunos de los escritos no publicados de Borges. Mi fuente me confirmó que son documentos originales; ¿puede usted demostrarlo?

Catarina no aclara nada, se limita a estirar la mano, entregándole su poema favorito. Daniel ve las marcas de los años estampadas en el papel, las notas inconfundibles de su ídolo, del hombre al que adora, que le motivó a estudiar periodismo. Al darse cuenta de la autenticidad del manuscrito, abre una sonrisa de par en par, lo besa repetidamente e insiste:

- Este documento tiene un valor inconmensurable doña Catarina. Necesito comprender cómo lo consiguió.
- Me dijo que va a escribir una biografía de Borges, ¿cierto?-
- Así es. Y poder contar con fuentes fidedignas es fundamental-
- Llamáme Catarina por favor, no somos tan mayores como para tratarnos de usted-

Daniel asienta y declara entusiasmado:

- Soy un profundo admirador de Borges. Muchos ya escribieron biografías sobre él pero ninguno lo hizo con la entrega afectiva que yo deposito. Borges tiene, y siempre tuvo, más peso en mi vida que mi propio padre-
- Los grandes escritores recrean lo visible y lo invisible de la vida: son magos y las letras son su varita. Por eso me encanta la literatura; sobre todo la literatura de nuestro país. Soy una fiel coleccionadora de Cortázar, Rulfo, Storni, entre otros. Al hijo, poema que ahora sostenés, tiene para mí un valor especial: fue recitado por mi ex-marido durante la misa del velorio de nuestro único hijo. Murió a los trece años...-

Daniel se acerca a Catarina y le toca el hombro en signo de condolencia. Catarina se apresura en secar las lágrimas, y ya sobreponiéndose a su quebranto, agrega:
- Pienso como Borges: "La eternidad está en las cosas del tiempo, que son formas presurosas". Todavía siento a mi hijo todos los días, en cada suspiro, en cada sílaba que emito. Desafortunadamente la gran pérdida que sufrimos terminó de destruir mi casamiento-

Se alza de repente y se detiene junto al Jacarandá, alejándose de Daniel. Él ha registrado con gran interés lo que acaba de escuchar, intuyendo poder usarlo en el trabajo biográfico. Es un ávido investigador del escritor y se encuentra bastante consternado por desconocer a Catarina, a sabiendas del tesoro que detiene; por lo que intenta conducir la conversación a otro lugar.

- Sos una mujer hermosa, perspicaz, seguro que encontrarás a otro compañero. Capaz pueden formar una nueva familia. Yo ya me resigné a ser un viajero solitario-
- Suena un poco triste ¿No tenés hijos entonces?
- No. No tengo tiempo para educar a una criatura. Tuve que dedicar mucho tiempo, toda mi vida, a mi propia crianza. Con la ayuda de Borges, claro-

Catarina mira a Daniel con rara expresión de espanto; su cara muestra sorpresa aunque no asevera si es positiva o negativa. Finalmente pregunta:

- ¿No tuviste padres que te cuidasen?
- Mi padre nos abandonó cuando yo era un bebé y mi madre murió cuando tenía trece años. Fui criado por una gran amiga de mi madre. Ella era muy esforzada, mujer generosa, por lo que trabajaba en dos turnos de la fábrica para mantenernos. Apenas nos cruzábamos en el departamento en el cual residíamos. Yo dispuse de mucho tiempo libre y un inmenso cajón vacío en el pecho; los dediqué a los libros-

Catarina termina de bajar la guardia, gracias a la creciente empatía que le absorbe.

- Mi padre nunca me reconoció tampoco. Así que fui criada por mi madre principalmente, salvo por la presencia de mi abuelo en mis primeros años de vida. Después que mi abuelo falleció nos mudamos a Rosario, porque le salió un puesto de profesora de literatura latinoamericana en la Universidad local-
- Interesante. De ahí probablemente viene tu pasión por la literatura-
- Sí, también. Mi madre fue una mujer muy inteligente, admirable. La extraño mucho últimamente-
- Es duro... Durante muchos años, tras la muerte de mi madre, leí diariamente el poema Inscripción en cualquier sepulcro de Borges. Me consolaba pensar que su alma siempre estaría cerca. Quizás hoy, mediante nuestro encuentro, las almas de tu madre y de mi madre están reclamando su inmortalidad de alguna forma-
- Bueno, yo creo en este tipo de cosas pero, ¿por qué creés que están reclamando su inmortalidad?
- Porque somos energía y la energía no se desintegra-  prosigue antes que Catarina pudiera comentar, dado que no quiere perder el foco en su trabajo, dejándose llevar por charlas metafísicas
- Se me está haciendo un poco tarde ¿Te importaría prestarme los escritos para que los mire?

Catarina acaricia la carpeta y titubea. La ansiedad del silencio es de súbito interrumpida por el canto de las cotorras del parque colindante.

- Podemos negociar el monto a pagar, dependiendo del tiempo e información brindados- señala Daniel, persuadiéndola.

Catarina le entrega la carpeta. Daniel comienza a escrudiñarla y, a medida que avanza en su chequeo, se da cuenta que realmente pueden ser manuscritos inéditos. Se excita aún más:

- Observo que tenés todo un libro de poemas acá. Calculo que compraste estos manuscritos o alguien te los regaló. Puedo pagarte una buena plata por lo que sabés, lo que sea útil a la biografía-
- Los conseguí a través de mi madre. Pensé muchas veces en publicarlos desde que ella murió.
- ¿Por qué no los publicó tu madre? Por qué no lo hiciste vos?-
- Porque mi madre dio su palabra a quién se los regaló; prometió que estas letras serían mi guía, me acompañarían, me orientarían a lo largo de mi vida y no serían compartidas con nadie más.
- Entonces, ¿por qué querés compartirlos ahora?
- Porque este sería el único legado que yo dejaría, perpetuando la presencia de mi familia-
- Borges ya es una figura eterna-
- Definitivamente. No obstante vos podrás contar cuán eterno es Borges para mí, su hija hasta ahora desconocida.

* Jorge Luis Borges nunca tuvo hijos biológicos en la vida real, pero tiene un sinfín de hijos adoptados: sus fieles seguidores.