sábado, 30 de noviembre de 2013

Clarão de Fumaça


O quarto estava iluminado, quase incandescente, devido a uma contínua descarga elétrica que provinha de fora. Era uma manhã de junho e um vento úmido, pegajoso, soprava no ar carregado de melancolia do hospital, movendo bruscamente receitas de médicos e outros objetos leves, como animais inquietos antes da anunciada tempestade.

Lembro que pensei, ao acordar nessa manhã, no sonho que havia tido, nas mensagens que invadiram o meu espírito, igual que essa  brisa pegajosa, imprevisível, desgovernada, e grudaram em mim sem maiores considerações.

Com a mente submetida ao tempo, luz veloz, ninada pelo sonho, dopada pela morfina, pelas feridas, pelas constatações amargas, revisei o calendário dos meus anos. O meu coração voou sem amarres, sem relógios, apesar do corpo pesado, disposto a cruzar as barreiras da memória para aterrissar no centro dos meus medos. Pouco a pouco, apesar da vertigem, alcancei descobrir o lado positivo dos temores e os admiti amigos.

Em todos os dias de confinamento sempre estive rodeado de medos e de familiares; principalmente da minha mulher. Ela esteve cuidando-me, dinamizando as enfermeiras e discutindo com os médicos sobre o meu tratamento primeiro, logo sobre os avanços da medicina, da astronomia ou da nutrição. Sim, minha mulher tinha essa capacidade de passar de um assunto a outro com moderado cinismo. Não conhecia sobre tudo o que debatia, mas as suas palavras sorriam e sua convicção era tão sincera que conseguia obter a atenção, e até mesmo o consenso, de qualquer audiência.

Ao recordar sua voz agora, seus grandes olhos cor de mel se acendem para mim; vibrantes e infantis. Meus olhos aos seus se prendem, fascinados, e percebo que meus sentimentos por ela não mudaram, nem mesmo estando distantes. Amo-a hoje como a amei inúmeros dias, durante séculos, discreto, orientado por esses olhos solares cujos raios projetavam esperança, tinham o poder de iluminar ou apagar a minha alma segundo a intensidade do seu brilho. Assim como as nossas diferenças...
Ah, mulher obstinada, obstinadamente vaidosa como eu. Os nossos orgulhos muito chocaram-se, numa luta de poder permanente. Muitas vezes a odiei, fugi, a enfrentei. Não nessa manhã de junho, nossa última manhã  juntos.

Não enfrentei, nem a ela nem a ninguém, porque não pude. Por causa da tristeza, da impotência, da doença, o fato é que não pude gritar que os amava e que me aborreciam. Somente lancei meu olhar desesperado e fechei os punhos espasmódicamente, telegrafando sílabas infecundas.
Mas a essa altura eu já estava morto, já haviam me matado. Para meus filhos, que brigavam brutalmente pela herança, meu nome era apenas uma assinatura num documento rentável. E minha mulher estava tão concentrada em controlar a manada que não intuía meus chamados de socorro. Agora compreendo que ela também pedia socorro.

Então acionei as enfermeiras. Meu filho enlouqueceu de raiva; era candidato a um cargo político e um escândalo no hospital não o favoreceria nada. Saiu disparado, não sem antes fitar-me com desprezo. A minha filha atirou-se no sofá e começou a chorar, vitimizando-se. Minha mulher tocava-a o ombro, sem dizer palavra, e olhava a chuva que caia substituindo suas contidas lágrimas.

Presenciando essa cena como testemunha amordaçada, recordei a infância dos meus filhos, os esforços que fizemos, os erros que cometemos, tantos e inevitáveis. Lembrei de quando nos conhecemos, dos seus faróis de ouro que penetraram no meu metabolismo de imediato, alterando os meus batimentos cardíacos.
Mas nesse momento eles pareciam apagados, cinzentos, embaçados pelas lágrimas contidas, perdidos na sombra da amendoeira. Quanta solidão! Tão profunda que a conduziu, pobre companheira de riscos e risos, a um lugar inóspito, desconhecido.  Queria gritar: volta! preciso de você! mas ela ensurdeceu e eu esmoreci. E esse silêncio, essa cumplicidade na dor, tinha um poder estranhamente reconfortante.

A chuva caia e os pingos batiam nas folhas das árvores, fazendo um barulho semelhante ao tic-tac dos ponteiros do relógio. Caia como temporal de horas, de décadas, mudando tudo: convertendo em pó, misturando o barro, dissimulando as formas. Desabava e nos levava, a mim e a minha mulher, a mergulhar em nosso próprio sangue, a chegar ao mesmo útero, ao berço da criação de nossos filhos, a miúdo tão alheios a gente, procurando respostas. De repente minha mulher encarou o céu molhado da noite recém-nascida, fechou os olhos e santigou-se. Dedicou-me um olhar tangencial. Senti que me dizia que ainda  tínhamos um ao outro.

Minha filha, enquanto degustava o sentimento de mártir, se preparava pra ir embora: me beijou a mão raquítica, dedicou-me um olhar compassivo e orgulhoso- o fato de ser a única herdeira em visitar o progenitor diariamente muito lhe satisfazia e, como consequência,  acreditava ser melhor filha que seu irmão- afastou-se de minha cama e pediu dinheiro a minha mulher para não sei o quê. Não importa o motivo, sempre existia uma boa desculpa para recorrer ao infinito caixa privado.

Ficamos a sós. Ela e eu. Minha mulher, quem nunca foi muito organizada, desatou a arrumar o quarto com uma meticulosidade inusitada. Ia de um lado para o outro, uma formiguinha que pegava coisas, carregava e  guardava, preparando-se para um longo inverno. Eu observava, ansiando que ela percebesse o meu espanto.  Mas até que não guardou tudo e se aproximou da minha cama para esticar os lençóis, umas cinquenta vezes, não consegui chamar a sua atenção. Aproveitei esse momento e desandei a mexer os pés, esperneando como um moleque. Então encarou-me. Ah, esses grandes olhos de coruja, de mãe desperta, de gargalhada fácil e fé incorruptível, como sinto a falta deles... Pena que antes, ainda noivos, quando ia visitá-la na sua casa de noitinha após as minhas aulas de engenharia, não pude gritar para toda a vizinhança  o homem sortudo que eu era. Ainda não sabia. Há lições que duram uma eternidade.

Naturalmente não pude falar, era tarde. Acenei com a mão para que chegasse mais perto, perto do meu rosto. E sussurrei: Vai embora? Ela soltou uma gargalhada sonora. Vou embora pra onde?, me perguntou enquanto me tocava o rosto com golpes leves. Eu quero conversar com o seu médico amanhã de manhã. Você não vai se livrar de mim assim tão fácil! Vou dormir aqui de novo. Pode ficar tranquilo.

Fiquei portanto mais tranquilo. As seguintes horas foram plácidas. Não discutimos sobre a atitude dos nossos filhos e como podíamos corrigir a situação, como costumávamos fazer sem descanso. Felizmente o único som que pairava no ambiente era o eco de sua gargalhada que durou a tarde inteira, pelo menos na minha cabeça. Minha mulher assistia televisão e sorria com seus lábios dourados e seus enrugados olhos carnosos.

Jantamos a insípida comida hospitalar. Ela me contou algo da trama da novela das oito que eu não escutei, como de costume. Só a frase final do seu comentário pareceu-me relevante. Tá vendo Gustavo, afinal todas as famílias têm problemas... Nós cuidamos com amor dos nossos filhos. Sorrimos um para o outro, cúmplices. Porém não cúmplices na dor como antes relatei, senão no gesto de gratidão mútuo, produto de tantos anos de parceria e contenção. 

Eu estava fatalmente cansado e dormimos.

Acordei aqui, atrás desta parede transparente, como simples espectador. Não sei quanto tempo passou desde que cheguei, porque tenho a sensação de ter dormido várias semanas. Quando acordei notava-me lúcido, nada me doía, só a urgência de ter notícias da minha mulher.

Do outro lado desta parede posso distinguir apenas um clarão de fumaça, quartos e corpos já irreconhecíveis, sem fronteira nítida ou acepção física. Permaneço vigiando, cativo do magnetismo das emoções ainda vivas, preso à memória do coração, mais poderosa que a memória dos eventos. A ânsia de me despedir da minha mulher me conserva aqui; tento encontrá-la no meio da fumaça, ver seus olhos de coruja sentinela, mas é inútil.

Pode parecer loucura, caro leitor, mas tenho a sensação de tê-la bem perto, mesmo sem vê-la. E me esforço, vale a pena. E por isso lhes escrevo a minha história, acreditando que a força dos nossos pensamentos, o seu e o meu, poderá trazê-la de volta. Contudo a lastimável verdade, lhes confesso, é que os pensamentos morrem como tudo, transformam-se, misturam-se, dissimulados.

Despenco no chão, sem hálito, sem letras, sem boca. Umas lágrimas descem dos meus olhos inexistentes criando um sulco no ar e logo batem nos meus pés descalços de matéria, gerando um efeito calidoscópico que pinta subitamente o ambiente diáfano. De novo brancura e silêncio. De novo a sua voz.... Mas, cômo?! Do outro lado não há mais que fumaça. De onde vem essa voz? Realmente endoideci de vez.

A voz, ainda mais forte, insiste: Gustavo, estou aqui. Falei pra você que não iria se livrar de mim assim tão fácil!!  E do nada, do meu lado, minha velha companheira se instala com sua aura de sol
  

1 comentario:

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