sábado, 30 de noviembre de 2013

Clarão de Fumaça


O quarto estava iluminado, quase incandescente, devido a uma contínua descarga elétrica que provinha de fora. Era uma manhã de junho e um vento úmido, pegajoso, soprava no ar carregado de melancolia do hospital, movendo bruscamente receitas de médicos e outros objetos leves, como animais inquietos antes da anunciada tempestade.

Lembro que pensei, ao acordar nessa manhã, no sonho que havia tido, nas mensagens que invadiram o meu espírito, igual que essa  brisa pegajosa, imprevisível, desgovernada, e grudaram em mim sem maiores considerações.

Com a mente submetida ao tempo, luz veloz, ninada pelo sonho, dopada pela morfina, pelas feridas, pelas constatações amargas, revisei o calendário dos meus anos. O meu coração voou sem amarres, sem relógios, apesar do corpo pesado, disposto a cruzar as barreiras da memória para aterrissar no centro dos meus medos. Pouco a pouco, apesar da vertigem, alcancei descobrir o lado positivo dos temores e os admiti amigos.

Em todos os dias de confinamento sempre estive rodeado de medos e de familiares; principalmente da minha mulher. Ela esteve cuidando-me, dinamizando as enfermeiras e discutindo com os médicos sobre o meu tratamento primeiro, logo sobre os avanços da medicina, da astronomia ou da nutrição. Sim, minha mulher tinha essa capacidade de passar de um assunto a outro com moderado cinismo. Não conhecia sobre tudo o que debatia, mas as suas palavras sorriam e sua convicção era tão sincera que conseguia obter a atenção, e até mesmo o consenso, de qualquer audiência.

Ao recordar sua voz agora, seus grandes olhos cor de mel se acendem para mim; vibrantes e infantis. Meus olhos aos seus se prendem, fascinados, e percebo que meus sentimentos por ela não mudaram, nem mesmo estando distantes. Amo-a hoje como a amei inúmeros dias, durante séculos, discreto, orientado por esses olhos solares cujos raios projetavam esperança, tinham o poder de iluminar ou apagar a minha alma segundo a intensidade do seu brilho. Assim como as nossas diferenças...
Ah, mulher obstinada, obstinadamente vaidosa como eu. Os nossos orgulhos muito chocaram-se, numa luta de poder permanente. Muitas vezes a odiei, fugi, a enfrentei. Não nessa manhã de junho, nossa última manhã  juntos.

Não enfrentei, nem a ela nem a ninguém, porque não pude. Por causa da tristeza, da impotência, da doença, o fato é que não pude gritar que os amava e que me aborreciam. Somente lancei meu olhar desesperado e fechei os punhos espasmódicamente, telegrafando sílabas infecundas.
Mas a essa altura eu já estava morto, já haviam me matado. Para meus filhos, que brigavam brutalmente pela herança, meu nome era apenas uma assinatura num documento rentável. E minha mulher estava tão concentrada em controlar a manada que não intuía meus chamados de socorro. Agora compreendo que ela também pedia socorro.

Então acionei as enfermeiras. Meu filho enlouqueceu de raiva; era candidato a um cargo político e um escândalo no hospital não o favoreceria nada. Saiu disparado, não sem antes fitar-me com desprezo. A minha filha atirou-se no sofá e começou a chorar, vitimizando-se. Minha mulher tocava-a o ombro, sem dizer palavra, e olhava a chuva que caia substituindo suas contidas lágrimas.

Presenciando essa cena como testemunha amordaçada, recordei a infância dos meus filhos, os esforços que fizemos, os erros que cometemos, tantos e inevitáveis. Lembrei de quando nos conhecemos, dos seus faróis de ouro que penetraram no meu metabolismo de imediato, alterando os meus batimentos cardíacos.
Mas nesse momento eles pareciam apagados, cinzentos, embaçados pelas lágrimas contidas, perdidos na sombra da amendoeira. Quanta solidão! Tão profunda que a conduziu, pobre companheira de riscos e risos, a um lugar inóspito, desconhecido.  Queria gritar: volta! preciso de você! mas ela ensurdeceu e eu esmoreci. E esse silêncio, essa cumplicidade na dor, tinha um poder estranhamente reconfortante.

A chuva caia e os pingos batiam nas folhas das árvores, fazendo um barulho semelhante ao tic-tac dos ponteiros do relógio. Caia como temporal de horas, de décadas, mudando tudo: convertendo em pó, misturando o barro, dissimulando as formas. Desabava e nos levava, a mim e a minha mulher, a mergulhar em nosso próprio sangue, a chegar ao mesmo útero, ao berço da criação de nossos filhos, a miúdo tão alheios a gente, procurando respostas. De repente minha mulher encarou o céu molhado da noite recém-nascida, fechou os olhos e santigou-se. Dedicou-me um olhar tangencial. Senti que me dizia que ainda  tínhamos um ao outro.

Minha filha, enquanto degustava o sentimento de mártir, se preparava pra ir embora: me beijou a mão raquítica, dedicou-me um olhar compassivo e orgulhoso- o fato de ser a única herdeira em visitar o progenitor diariamente muito lhe satisfazia e, como consequência,  acreditava ser melhor filha que seu irmão- afastou-se de minha cama e pediu dinheiro a minha mulher para não sei o quê. Não importa o motivo, sempre existia uma boa desculpa para recorrer ao infinito caixa privado.

Ficamos a sós. Ela e eu. Minha mulher, quem nunca foi muito organizada, desatou a arrumar o quarto com uma meticulosidade inusitada. Ia de um lado para o outro, uma formiguinha que pegava coisas, carregava e  guardava, preparando-se para um longo inverno. Eu observava, ansiando que ela percebesse o meu espanto.  Mas até que não guardou tudo e se aproximou da minha cama para esticar os lençóis, umas cinquenta vezes, não consegui chamar a sua atenção. Aproveitei esse momento e desandei a mexer os pés, esperneando como um moleque. Então encarou-me. Ah, esses grandes olhos de coruja, de mãe desperta, de gargalhada fácil e fé incorruptível, como sinto a falta deles... Pena que antes, ainda noivos, quando ia visitá-la na sua casa de noitinha após as minhas aulas de engenharia, não pude gritar para toda a vizinhança  o homem sortudo que eu era. Ainda não sabia. Há lições que duram uma eternidade.

Naturalmente não pude falar, era tarde. Acenei com a mão para que chegasse mais perto, perto do meu rosto. E sussurrei: Vai embora? Ela soltou uma gargalhada sonora. Vou embora pra onde?, me perguntou enquanto me tocava o rosto com golpes leves. Eu quero conversar com o seu médico amanhã de manhã. Você não vai se livrar de mim assim tão fácil! Vou dormir aqui de novo. Pode ficar tranquilo.

Fiquei portanto mais tranquilo. As seguintes horas foram plácidas. Não discutimos sobre a atitude dos nossos filhos e como podíamos corrigir a situação, como costumávamos fazer sem descanso. Felizmente o único som que pairava no ambiente era o eco de sua gargalhada que durou a tarde inteira, pelo menos na minha cabeça. Minha mulher assistia televisão e sorria com seus lábios dourados e seus enrugados olhos carnosos.

Jantamos a insípida comida hospitalar. Ela me contou algo da trama da novela das oito que eu não escutei, como de costume. Só a frase final do seu comentário pareceu-me relevante. Tá vendo Gustavo, afinal todas as famílias têm problemas... Nós cuidamos com amor dos nossos filhos. Sorrimos um para o outro, cúmplices. Porém não cúmplices na dor como antes relatei, senão no gesto de gratidão mútuo, produto de tantos anos de parceria e contenção. 

Eu estava fatalmente cansado e dormimos.

Acordei aqui, atrás desta parede transparente, como simples espectador. Não sei quanto tempo passou desde que cheguei, porque tenho a sensação de ter dormido várias semanas. Quando acordei notava-me lúcido, nada me doía, só a urgência de ter notícias da minha mulher.

Do outro lado desta parede posso distinguir apenas um clarão de fumaça, quartos e corpos já irreconhecíveis, sem fronteira nítida ou acepção física. Permaneço vigiando, cativo do magnetismo das emoções ainda vivas, preso à memória do coração, mais poderosa que a memória dos eventos. A ânsia de me despedir da minha mulher me conserva aqui; tento encontrá-la no meio da fumaça, ver seus olhos de coruja sentinela, mas é inútil.

Pode parecer loucura, caro leitor, mas tenho a sensação de tê-la bem perto, mesmo sem vê-la. E me esforço, vale a pena. E por isso lhes escrevo a minha história, acreditando que a força dos nossos pensamentos, o seu e o meu, poderá trazê-la de volta. Contudo a lastimável verdade, lhes confesso, é que os pensamentos morrem como tudo, transformam-se, misturam-se, dissimulados.

Despenco no chão, sem hálito, sem letras, sem boca. Umas lágrimas descem dos meus olhos inexistentes criando um sulco no ar e logo batem nos meus pés descalços de matéria, gerando um efeito calidoscópico que pinta subitamente o ambiente diáfano. De novo brancura e silêncio. De novo a sua voz.... Mas, cômo?! Do outro lado não há mais que fumaça. De onde vem essa voz? Realmente endoideci de vez.

A voz, ainda mais forte, insiste: Gustavo, estou aqui. Falei pra você que não iria se livrar de mim assim tão fácil!!  E do nada, do meu lado, minha velha companheira se instala com sua aura de sol
  

sábado, 9 de noviembre de 2013

Noite Vermelha

Luzes, música e conquista. Pessoas dancavam na pista, pavoneando a roupa de griffe, elaborando os seus gestos mais persuasivos. Ele passeava entre elas, sem misturar-se nesse cocktail de suor, álcool e branqueamento laser. Ele era diferente. Delicioso, nutritivo, como o azeite. De oliva, claro.
De longe, lambuzou meus desejos, meus sonhos. E essa ânsia pegajosa foi aumentando com o passar das horas, cozinhando-se no meu peito a fogo alto. Até que foi servido o prato: era amigo de uns amigos. Conversamos durante algum tempo, nao sei exatamente por quanto, mas realmente nao importa. A partir de um certo momento deixei de prestar atencao nas suas palavras, porque elas perderam a funcao original de comunicar. Calculo que por um mecanismo do meu inconsciente, passaram a ser um íma que me puxava aos seus lábios sem parar. Foi inevitável: quando tocou a minha cintura e sussurrou-me ao ouvido, quase pude distinguir os gritos que emitiam os nossos cheiros. E assim sucedeu o primeiro beijo, culminacao do instinto.
Beijou-me como um lobo faminto, selvagem. Fomos presas de beijos versáteis, picantes e suaves, compassados por seus dedos que cavavam minha pele; porém, em vez de produzir-lhe sulcos, a fizeram avermelhar-se, inchando-se como energia condensada.
Olhou-me. As minhas maos primeiro, ao esmalte violeta com brilhos estelares, aos nódulos e longitude dos meus dedos, as rugas de janeiros e atividades. Com seu olhar acariciou-me as extremidades, chacoalhando-me o corpo inteiro. Depois fitou-me profundo e direto. E mergulhei entre imensas montanhas cravadas no centro da terra; vivi uma expedicao através do seu globo ocular, repleto de fauna, flora, vida. Uma esfera reconhecidamente assustadora e irresistível.
Afinal, nessa noite vermelha, escutei o que me pediam seus olhos, seus beijos, meus anseios de infância e me entreguei ao amor, às circunstâncias.

jueves, 7 de noviembre de 2013

A mudanca


Ester observa, apoiada na porta de vidro aberta, os raios de luz que clareiam o Jacarandá do pátio vizinho, concedendo-lhe áureo mistério, uma aparência quase mística; essa luz também denuncia uma infinidade de insetos, que de tão minúsculos, se confundem com o pó e o pólen que flutuam no ar primaveril. Distingue o canto de quatro ou cinco pássaros, dentre os 270 tipos diferentes que habitam Buenos Aires, e celebra por dentro a vitória do belo sobre o feio,  já que esse canto dissimula o barulho dos prédios em construção. Nos Bosques de Palermo, a poucos quarteirões de distância, há árvores centenárias onde canários, bem-te-vis e catorras alinham-se, formando um coro de louvor diário.  A combinação dessas notas é um instinto que materializa-se em música, analisa Ester com os ouvidos cativos. Um instinto, código armazenado, base de vozes inconscientes que se entrelaçam, mas que logo, irremediavelmente, continuarão por caminhos distintos. É lógico, pensa, assim funciona a vida, em constante simbiose: o caso do sol e da lua que sempre caminham em paralelo, porque um não existe sem o outro. Talvez por isso- seu pensamento se detém por um instante, temeroso- sinto que nasço e morro diariamente, porque a morte e a vida são linhas perpendiculares, forças complementares.
Ela atravessa a porta de vidro intoxicada pelos gases do seu pensar vertiginoso. Já na pequena varanda do apartamento, coloca-se em frente a um vaso retangular de cerâmica. Começa a mexer na terra. Suas mãos apresentam uma sensibilidade acidental, portanto a terra, de repente, parece embrenhar-se na sua epiderme, transformando-a. Esfrega os dedos procurando as ocultas marcas digitais. Só a brisa que sopra- rajadas de vento inesperadas, selo de Buenos Aires- é capaz de trazê-la de volta à este momento, à sua diminuta varanda. Acaricia o bonsai que repousa no vaso, pega a tesoura e começa a podá-lo cuidadosamente.
Esta árvore foi um presente de uma sábia amiga brasileiro-japonesa. Elas se conheceram em uns encontros de meditação no bairro de Palermo e Nikito inspirou-lhe de cara enorme paz, ensinou-lhe muito sobre a virtude da paciência ao longo dos últimos três anos. Decide ligar pra ela:
- Oi querida! Tudo bom?
- Olá amiga, tudo ótimo! Agora tô saindo pra pegar o Lucas no colégio. Lembra que ele hoje apresentava o projeto de química ao comitê de professores? Pois é, ele me ligou dizendo que tudo correu muito bem e que acredita que obterá a nota que precisa pra passar de ano! Tô super feliz!
- Que maravilha! Eu sabia que o Lucas ia se sair bem. Ele é muito inteligente.
- Mas diga lá, e você, tudo bem? Como vão os trâmites da mudança?
- Ai, sabe como é que é... Muita papelada, além do trabalhão que dá vender todas as coisas que tenho. Não vale a pena pagar excesso de bagagem pra levar pertences inúteis...
- Lógico. Eu posso te ajudar com o que você precisar. Conte comigo, já sabe! Caramba, vou chegar atrasada. Devo desligar. Posso te ligar mais tarde?
- Sim, sim, vai lá. Depois a gente conversa
Ester começa a fazer uma xícara de chá detox de melão, gengibre, eucalipto e mel, um dos seus sabores favoritos. Costuma tomá-lo em ocasiões de comemoração: está feliz em saber que o Lucas se destacou.
Senta-se no único puf que restou na sala, com a xícara na mão, e olha ao redor. Sua casa, antes armada com as mobílias certas, as cores ideais, agora é um deserto de úmidas lembranças. Uma solidão indescritível invade seu peito e chora como uma criança
Saindo à superfície desse poço, ergue seus ombros e encosta o couro cabeludo na parede, no meio de um quadro branco com moldura preta, uma espécie de obra de tempo, restos y permanência. Recorda as últimas semanas, a correria, os encontros farewell organizados, a amável e triste Nora que comprou-lhe diversos artigos usados; praticamente a sala inteirinha. Nora chegou com o nariz quase colado ao pescoço: dava pena. Quando se atreveu a olhar pra cima, o primeiro que perguntou foi porque a Ester mudava de país, cuspindo sílabas suplicantes. Ester respondeu que mudava-se por causa da família e tratou de mostrar-se contente. Nora forçou um sorriso mentiroso, apoiou as mãos calejadas sobre a barra da cozinha e dedicou-lhe um olhar morto. Então a Ester notou que ela precisava constatar, na verdade, se alguém mais passava por uma mudança drástica e inesperada; precisava não sentir-se só na desgraça. Concluindo Nora, enquanto contidas lágrimas se formavam em seus olhos, afirmou: somente podemos contar com a família e os amigos... Nunca com os homens. Acredito que o seu retorno à casa é positivo.
Ester sorriu, basicamente porque não sabia o que dizer, melhor dito, não sabia se podia dizer algo mais. Nora interpretou o seu sorriso como um consenso, ou simplesmente não se conteve mais, e acabou despejando - falou com tanta urgência que mais parecia vomitar- que havia terminado com o seu namorado, com o qual levava apenas um ano de convivência, e sentia-se culpada, frustrada, pelo fato de terem durado tão pouco como matrimônio, depois de quase dez anos de relacionamento. Ester, torcendo pra finalizar a conversa, sussurra: tudo é um processo, portanto a novidade é necessária e sempre proveitosa. Sussurrou sem pensar, como que tirando um papel do bolso e recitando o que estava escrito por outra pessoa. Foi uma situação muito constrangedora. A Nora, do nada, abraçou-a com tanta força que quase quebrou-lhe as costelas. Contudo Ester sentiu-se útil, satisfeita de ter contribuído, sem saber exatamente o alcance de sua contribuição.

Com a xícara na mão, acreditando que os atos valem mais que mil palavras, remói que a palavra bem intencionada, no momento certo, faz uma grande diferença. Quantas vezes dizemos realmente o que os outros precisam escutar, em um ato de doação genuíno? Sem que a mensagem veja-se tingida de raiva, temor ou orgulho? ... É, dizer a palavra certa  sem esperar nada em troca, sem nenhum rastro da natural contaminação oriunda do conhecer-se, das desconfianças latentes, dos desejos encontrados, é todo um desafio...

Obcecada com a ideia, Ester bebe o chá tão rápido que termina engasgando-se. Preciso tomar ar fresco, pensa, então pega a bicicleta e se dirige aos Bosques de Palermo.

O céu está desbotando-se, regenerando-se, morrendo para renascer como céu novamente. Ela sente a sua caixa torácica ampliada e uma sensação desconcertante enquanto pedala,  porque experimenta, intensamente, uma liberdade sem rosto, sem forma: assustadora.  
Circula devagar,  em volta do lago, saboreando a débil luz que o ilumina. Há uma entidade que paira invisível sobre o topo de palos borrachos, sauces, palmeras e tipas, árvores que moram na ilha, e sobre seu coração alvoroçado. Pára de pedalar, se senta em um dos bancos e, ainda com palpitações, contempla os cisnes que atravessam o asfalto.  Que loucura! Vão morrer atropelados! grita internamente. Entretanto os cisnes, apesar do receio, conseguem chegar ilesos e aterrissam na água com uma pompa só compatível, segundo a lógica, com um estado de inconsciência diante do perigo. 
Enquanto recobra-se do susto, percebe novamente essa presença, esse espectro representado pelo sol, água trêmula, animais, vento, almas em pena. Presença que a acende, intuição cintilante, invisível, abrangente. Adoraria saber voar para chegar bem alto, cruzar a estratosfera se preciso, e assim verificar se essa presença acaba, tem um formato e um caminho.

Faz frio nas tardes de primavera em Buenos Aires. O canto dos pássaros, o baile das flores, aquieta-se, e o parque parece um mágico cartão postal. Ester pega a bicicleta, com intenção de regressar à casa, mas começa a dar voltas sem destino.  Por um momento dúvida  se o apartamento onde passou os últimos anos de sua vida é ainda seu lar. Hoje é um espaço semi-vazio, lugar onde ontem a solidão vivia acompanhada pelos livros, pela imaginação, pelos amigos. Agora ela vaga sozinha entre o resto de coisas e memória.

Pedala com sofreguidão, parindo lágrimas contra o vento, até que, no meio de atribulados pensamentos, ela lembra da visita agendada com os compradores da cama. Deve retornar ao apartamento quanto antes.

O casal jovem chega pontual ao encontro. Já estão na porta do prédio quando a Ester aparece.  A mulher carrega uma neném lindíssima, dona de umas bochechas rosadas, uns olhos puxados de mapuche e um cabelo grosso como o solo lunar. A neném sorri-lhe e a Ester encara a mãe da criatura com expressão de ingenuidade, procurando aprovação no rosto dela para acariciar a sua filha. Durante o percurso da visita, Ester presta mais atenção às caretas, brincadeiras e jogos que o pai efetua e a bebê retribui, convulsionando-se no colo da mãe e observa a conduta da criança, que naturalmente desconhece o lugar mas não o rejeita por isso, ao contrário, se interessa em explorá-lo. E pensa, uma criatura tão nova, pura, que ignora razões, é uma folha em branco que contêm conceitos de instinto e fé, sem vestígios de dialética.
Logo observa os pais. Um casal em agradável sintonia: ela, com sua fala amorosa e singela, e ele, viril protetor, cujos olhos exclamam admiração ao se encontrar com os dela.  
Concluídas as transações comerciais de praxe, o casal vai embora. Ester está contente como se houvesse recebido amigos em casa, grato costume que a preenche. Nota que a harmonia dessas pessoas a contagiou, e outra vez  afirma que é talvez suscetível demais aos problemas alheios.  Aliás, fazendo jus a sua afirmação, bate com a palma da mão na testa e diz: tenho que finalizar a proposta, esse interminável Business Case, para que, de uma vez, possamos reestruturar a equipe. 
Senta-se no puf, pega o computador e deposita-o sobre as pernas. Abre o Outlook porque deve consultar um email para desenvolver a proposta. Na caixa de entrada vê uma mensagem da sua chefe cujo título indica Move to Brazil e decide abri-la em seguida.
O espanto que paulatinamente vai  se revelando no rosto de Ester é desconcertante para mim, como narrador: provoca-me uma pena infinita e embaralha os meus pensamentos, fazendo-os um maçarico de impotência. Mas prossigo, sou apenas um comunicador.
O fato é que a Ester desaba por completo: até as rugas do seu rosto tornam-se mais profundas por conta das lágrimas que as navegam como rios caudalosos. Neste momento, curiosamente, lembra da Nora, da sua vulnerabilidade, e deseja ligar pra ela, gritar que ela não está sozinha, que ninguém está imune a decepção.
Toca o telefone. Ester não atende, levanta-se e vai ao banheiro pra lavar o rosto. O telefona toca de novo. Desta vez a Ester atende.
- Alô, diz com a voz rouca
- Oi lindona, tudo bom? Tá com a voz estranha...
- Oi amiga, desculpa, tô bem chateada viu... Recebi um email da minha chefe dizendo que ela cometeu um erro ao me afirmar que o salário que me ofereceu não era líquido e sim bruto.
- Quê?! Ui... então isso significa que você vai ganhar bem menos do que esperava, né? Quanto é o que descontam mesmo de INSS, IRPF, etc?
- 39% mais ou menos...
- Nossa! Pra que depois os nossos políticos, corruptos, roubem tudo no lugar de investir em educação e saúde. Ai, quê vergonha Senhor! Lamenta Nikito.
-Bom, mas agora o importante é entender a sua situação amiga, o que você vai fazer? Vai voltar  para o Brasil mesmo assim?
Ester,  primeiro diz não saber, logo xinga a sua chefe, a sua empresa, brama frases desconectas, até que, subjugando sua própria indignação, acaba por afirmar que não tem mais remédio que aceitar e se cala. Nikito fica em silêncio, esperando uma nova rajada de palavras doloridas e terapêuticas.  E, efetivamente, ela continua. 
- Para quê tudo isso?! Afinal vou morar no Brasil ganhando pior que na Argentina. Não tem cabimento...

A Nikito propositalmente muda de assunto, compreendendo que a Ester não tem escolha e portanto é melhor não aprofundar no ocorrido.
- Como foi a aniversário do seu sobrinho? Vi algumas fotos postadas no Facebook. Ele estava muito fofo. É impressionante como o tempo passa... O vi nascer e ele já tá enorme menina!
- Pois é... Em pensar que há apenas um ano e meio ainda engatinhava. As crianças me estimulam muito: elas crescem, sem intenção, sem travas. Também sem volta atrás. O tempo é invencível...
- Invencível e relativo, Ester. O tempo também é filho das decisões individuais, das aprendizagens percebidas.
Ester medita por uns instantes e cita o que lhe ocorreu no parque
- Você sabe que eu sempre gostei de pedalar, da sensação do vento no meu rosto. Pois bem, há poucas horas, quando fui com a bicicleta passear no parque, senti desconforto por causa do vento, da liberdade indivisível que ele me produz. Uma forte angústia me possuiu, como se essas rajadas em vez de soprar-me pra frente, tentassem me derrubar da bicicleta, arrojando-me num abismo desconhecido. 
- Talvez porque o vento continue soprando, continue sendo um estímulo pra você, só que agora ele sopra em outra direção. Mas ninguém diz que isso é necessariamente ruim
- Bom, sentir angústia não é muito agradável...
- A febre não é prazerosa porém serve para indicar alguma infecção no corpo. Sem ela não haveria chance de mudar o curso da doença.
Ester se irrita bastante. Não está para bate papo karmático neste momento.
- Nikito, desculpe, mas agora eu só consigo sentir raiva. Sinto-me enganada. Quê diabo de febre é essa?! O que eu tenho é um mal milenário e humano, simples sintoma de uma injustiça...
- ok, compreendo. Mas lembre-se então dos motivos que te levaram a pedir a transferência para o Brasil.
- Tá bom, tá bom... Querida, vou desligar. Vou tomar um banho e relaxar um pouco. Pelo menos o chuveiro não foi retirado! Ester brinca, com magoado sarcasmo
Pega o computador novamente.  Olha as fotos do seu sobrinho no Facebook.  Sente dor de cabeça. Levanta-se e se dirige ao quarto. Encara-se na porta espelhada do armário embutido. Vê os seus olhos inchados, as rugas na testa e pensa, gostaria de renovar o guarda-roupa... Qual é o meu estilo? Recorda de todos os tipos de roupa que já vestiu, as modas que viveu, como se sentia em cada etapa, como essas roupas a descreviam. Reflete sobre como veste-se hoje e sobre o que transmite à sociedade. Qual é o meu lugar no mundo?, é a ideia que acaba por se instalar na sua cabeça dolorida.
Retorna ao computador, olha as fotos do sobrinho no Facebook e sorri. Lembra da sua infância, embaixo da Laranjeira, vendo o pai jogar futebol ; da sua adolescência, nas horas que passava escutando a música da mãe, lendo as letras em inglês ou espanhol, tentando aprendê-las com o dicionário ao lado; dos poemas que escreveu para o primeiro namorado, aquele amor tóxico que a perturbou durante décadas. Uma vontade súbita de escutar música a impregna, então abre o YouTube e acha um vídeo sugerido. Clica no vídeo; trata-se de um show ao vivo do cantor de salsa, Óscar de León, em Cali, Colombia. O cantor, com todo seu swing natural, sacode os quadris e os ombros exorcizando energia em cada canto do corpo. A canção que toca, Llorarás , a transporta aos seus vinte e poucos anos em Madri, àqueles clubes de salsa, àquele amor ideal e veemente. E assim sua consciência degusta as estáticas cenas, as palavras antigas, o papel protagonista e os silêncios antagônicos. Outra vez a imagem da Nora mistura-se com seus demônios, penetra nos  poros de sua mente. Os seus lábios esticam-se de leve e sua língua remexe na boca, saboreando a doçura de pretéritas auroras. Toca a campainha. Ester atende.

Flávia está parada na porta do prédio, enquanto um opala preto a espera do outro lado da calçada. Ester e Flávia sobem as escadas até o primeiro D. Ester nota que ela tem dificuldades de subir os degraus, já que a ouve queixando-se de dor nas costas. E fica desconfiada pelo homem que não se ofereceu para ajudar a carregar tanta tralha. Ele é o seu maridoFlavia responde que sim, com a cabeça baixa.  
- E não vai ajudar? 
-Ele não queria que eu viesse...
- Por quê?
-Porque tá sem emprego e não aceita que eu compre as coisas da casa.

-Hum, situação chata né... Faz muito tempo que ele tá desempregado?
- Uns cinco anos pelo menos. A gente se apanha com o meu salário de recepcionista e com essas ajuda do governo. O meu marido teve um acidente, sabe, e ficó sem poder trabalha. Mas o probrema agora é otro senhora... O probrema é o buteco do lado de casa. Graças a Deus tenho um patrão muito bom. Ele é pediata, pedriata, sei lá; atende a molecada. Ele é tão bom que tá me ajudando com a gravidez assim não tenho que gasta dinheiro com remédio, nem médico.
- Você tá grávida?! Não tinha nem reparado! De quantos meses?
- Acho que tô de cinco. 
- Nossa... Você não engordou nada...
- É... Diz o meu patrão que é por causa do estres, que eu como mal. Vou seguir a dieta que ele mandou. Por isso que eu quero o liquificador que a senhora tá vendendo... Quanto é que é mermo?
-  Bom, o que mais você vai comprar? Talvez eu possa  fazer um desconto extra.
- Só posso comprar agora a cômoda, o liquificador e o armário branco do banhero.
- Tá bom. O liquidificador vai de presente. 
- Nem sei como lhe agradecer... despeja Flávia, incrédula por tanta generosidade.
- Não tem nada que agradecer. A verdade é que fico feliz em que você e seu filho tirem melhor proveito do liquidificador do que eu. Mas diga lá: como vamos descer a cômoda sozinhas? Você está grávida e não convém que carregue peso assim.
Flávia sacode os ombros. Ester hesita em indagar mas afinal reitera: posso pedir ajuda ao seu marido?
Flávia estremece inteira mas não parece abalada pela pergunta, porque no fundo deseja que alguém sugira o que a Ester sugeriu, o que ela não tem coragem de reclamar. Então balança afirmativamente a cabeça.
Descem juntas, Ester carrega o armário pequeno de banheiro e a Flávia o liquidificador. O marido, um homem tosco e agigantado, está de pé, encostado no opala preto com cara de poucos amigos. A rua está movimentada, são oito horas e as pessoas, depois do trabalho, estão nos supermercados, nas lojas do bairro; os passarinhos dormem e as buzinas perturbam, sempre acordadas.

O marido dirige a Flávia um olhar alarmante e abre a mala do carro sem vontade. Ester sente um pequeno arrepio na espinha. O marido a cumprimenta secamente, pede que deixe o armário branco no chão da rua e logo arranca o liquidificador das mãos da Flávia. Ester retém os impropérios que povoam a sua boca quando ao elevar seu olhar do chão, ao passá-lo ao longo das canelas e braços da Flávia, percebe vários hematomas impressos no corpo dela. Parecem-lhe marcas de agressão física e vendo a atitude do marido, as atribui aos seus ataques de fúria. Mas não fala nada. Observa o casal e pode sentir o medo que vibra em cada gesto da Flávia. Só quer que retirem a cômoda, então diz de supetão: o senhor me desculpe mas preciso que me ajude a descer a cômoda. O marido tira a cabeça bruscamente de dentro do porta-malas, olha de imediato à Flávia e responde: tô com pressa senhora. A Ester olha para a Flávia, vara verde com lábios franzidos e olhos cheios d'água, então decide que eles devem ir embora porque não quer gerar maior confusão.
Tudo bem. Talvez vocês possam voltar outro dia, diz Ester. O marido assente e logo faz um gesto com a cabeça ordenando à Flávia que entre no carro. A Ester acompanha a situação, com um certo tremor nas pernas. Não me pagaram, pensa ao mesmo tempo que vê o marido apertando o braço da Flávia, já no banco do carona. Melhor deixar pra lá, melhor chamar a polícia. Chau! Acena enquanto o opala sai disparado, sem parar nos cruzamentos, sem se despedir. Tenta ler a placa: é inútil, está deteriorada, ilegível.

Ester entra no apartamento e se dirige diretamente ao bonsai. Seu coração ainda bate acelerado e fica pensando no que deveria ter feito. Todo esse desgaste a deixa faminta, então sai pra comprar comida. Esperando a preparação da salada que pediu, justifica-se internamente pelo fato de não ter tomado uma atitude diante do verdugo. Fiquei travada... Sabe-se lá o que esse cara é capaz de fazer. Talvez fosse até pior pra Flávia se eu me intrometesse... Preciso contar isso pra Nikito, pensa. Volta pra casa correndo e liga pra ela:
- Oi amiga, já tá dormindo? Desculpa, talvez seja um pouco tarde...
- Tudo bem. O Lucas já tá dormindo e eu to me preparando pra dormir. O que houve? 
Ester conta o episódio da Flávia e do marido, dividindo o sentimento de culpa que a consome. 
- Você tinha marcado com eles?
- Sim, mas tinha esquecido completamente. Achei muito estranho o cara não ter subido pra ajudá-la e quando vi a reação dele na porta do meu prédio, senti raiva e medo. Não sei como a Flávia suporta isso!
- Pois é... E é ela quem ganha o dinheiro. Quem sabe quais são os seus motivos?...
- Fico pensando nessas pessoas: na Nora- lembra da mulher triste que me abraçou?- no casal apaixonado e sua bebê com feições de índia, e agora, no terrível drama da Flávia... Que complicadas são as relações humanas!!
- Principalmente porque não sabemos o que queremos e tomamos decisões, as vezes, daninhas.
- Fiquei com muita pena dela...
- Você pelo menos a beneficiou com os artigos grátis que levou. O resto é livre arbítrio, dizem... Aliás, já vendeu tudo?
- Falta pouca coisa. Tô viajando depois de amanha. Você vai me levar no aeroporto afinal?
- Levo sim. Vou com o Lucas. Nikito boceja e diz, Amiga, vamos descansar, a gente se fala amanha.

Passam os dois dias num piscar de olhos. Finalmente a Ester está no Brasil. Há de viajar do Rio de Janeiro a São Paulo para assinar uma papelada. No aeroporto de Santos Dumont, já na porta de embarque, encontra-se surpreendentemente com o seu primeiro grande amor: Sérgio. Durante o vôo fica sabendo que ele está divorciado, tem uma filha, que seguiu com o negócio familiar. Saem pra jantar nesta mesma noite e acabam dormindo juntos.

Ester, ao retornar de São Paulo, procura desesperada os poemas que escreveu na adolescência, aspirando sustentar as imagens borradas que perambulam na sua cabeça e se misturam com o cheiro, o sabor do Sérgio, todavia incrustados no seu corpo. Durante o último encontro, a chama do passado reacendeu no seu peito e iluminou o seu ventre, os corpos sem jeito, esse momento perene. Mas, como sempre, sopra o vento arrastando dias, eventos, tentativas; eliminando certezas e velharias. 

Ester afinal assina o contrato com a empresa, apesar da desmotivação que sente. Ultimamente, não tem vontade de nada, está muito cansada, e o atribui à recente mudança.  Passam os seguintes dois meses desde sua chegada, a Ester focada na família e num projeto pessoal. Até que um dia se sente mal e desconfia. Vai até a farmácia. Volta para casa e se tranca no banheiro. Com um ataque de gargalhadas e pranto, se mete no chuveiro. 
Sai molhada- sente um calor insuportável- e desde a porta, vê o bonsai no novo canteiro. Nota que lhe nascem novos galhos e sorri entusiasmada. Se enxuga um pouco e pega o telefone:
- Oi Nikito! Amiga, pode falar? Tenho que te contar uma super notícia... Tá sentada? 
- Ai, ai, não me assusta. Fala logo!
- Eu tava me sentido mal e fui à farmácia. Lembra do encontro com o Sérgio?
- Sim, e dai?! O que tem a ver?!
- E daí, querida, é que eu acho que tô grávida

FIM

lunes, 14 de octubre de 2013

Memoria y Vigilia

El mar toca mis dedos
arreciando el miedo
que nace en mi talón.

Moja mis piernas con
recuerdos, auroras,
rostros, voces, olas
flujo del pensamiento

Entonces llega el viento,
suave peina la espuma
luego se alza y curva
abrazando el océano.

Sé que el aire me guía
soplándome secretos
que me invitan a volar

Porque siento cosquillas
por todo mi cuerpo
como si fuera de pronto
una ruta de hormigas

El cuerpo reacciona,
mientras el alma llora
porque el mar le arroja
a lo que fue para el mundo

Pero aún con los pies presos
en la arena del pasado
surgen en mis omóplatos
dos curiosas alas

Así que encaro el segundo
me subo al voluble viento
para permanecer siendo
memoria y vigilia

domingo, 6 de octubre de 2013

Guerra ou dança

A vida é guerra ou dança?

Uma valsa romântica
Um tango nostálgico

Um flamenco apaixonado
ou um cinza, lamentável
lança-rojão?

São pés compassados ou
tiros espalhados?

Movem-se os corpos
segundo a marcha fúnebre de Chopin
ou a estação colorida de Vivaldi?

Qual é a música que toca,
essa canção de mundo,
gemidos do moribundo
ou risos do coração?

Risos, notas musicais
batimentos essenciais
em allegro ou adagio
ecoam no salão...

Mas a pergunta
ainda não foi respondida
ela ainda fica
vagando entre pés e mãos

Será a vida uma guerra
evidente e singela
que sustenta a história
e a reclama na memória?

Será que o homem
apesar de tanta fome
prefere o ressentimento
ainda hoje, ao perdão?

Mas a pergunta
ainda não foi respondida
ela ainda fica
vagando entre pés e mãos





sábado, 5 de octubre de 2013

Sentido

O homem sorri ao céu
com lábios de meia lua
e olhos de entardecer

Exposto a noites e dias,
estiagem, chuvisca,
mormaço, ventania;
ele sorri

Estica com prazer
todas as rugas do rosto
olhando pra cima, devoto
sente o vento correr;

tocar o seu corpo esguío
com esses dedos vazios
que o fazem estremecer

Tocá-lo de um jeito
semelhante ao efeito
da pele no mar frio

Como um amplo leque,
abana os cantos de pele,
maré que sobe e desce
dentro do peito

Toca-o em suas raízes,
as mesmas cicatrizes
com um sopro seco

Porque é labareda,
intensa chama acesa
sobre água estancada

Como mãos de amante,
suadas e vibrantes;
Como o sábio rio,
preserva seu caminho

Ele vê o céu colorido,
aberto aos estímulos
desse vento passageiro

Sorri, já é outro janeiro
e o vento companheiro
seduz aos seus sentidos

sábado, 14 de septiembre de 2013

Mundo acallado

Soñé durante varias noches
con un triángulo;*
un polígono difuminado
un monte encapotado
una pirámide.

No tenía tres lados:
le faltaba una pierna;
un ángulo cojo
un círculo sin ojo
un papel sin letras.

Un papel que colgaba
del vértice inacabado
luego caía inerte
y lloraba amargo

Sus lágrimas corroían
los pictogramas
-confusos anagramas-
de la tablilla de Kish**;
signos en piedra caliza,
-padre de las sílabas-
hallaban su fin

De repente llegaba el
silencio; denso
como lodo; pantano
deforme, tosco;
hendidura entre tierra
y cielo

?Sería la nada mitológica,
guía de seres divinos,
que conducía al olvido
a Homero y a Ovidio?

?Caos, sin luz o referencia,
noches sin descendencia
los condenaba al vacío?

?Qué sería de los mitos
las bíblias, los libros,
cuadernos, pergaminos,
de la historia y sus anhelos?

Soñé despierta, nocturna
un mundo sin escritura
carente de poetas y lunas,
ignoto y desabrido

*Triángulo semiótico:
En esencia, se trata en buena parte de términos equivalentes que en el lenguaje de la tradición filosófica significan:
•El significante (o símbolo o nombre), es decir, el sonido de las palabras, el dibujo de una imagen; en resumen: el signo en su aspecto físico y concreto.
•El significado, lo que en la filosofía se ha denominado siempre : es decir, la noción, la idea, la vertiente mental, la parte conceptual de un signo.
•La cosa o referente, la parte de la naturaleza a la que el signo se puede referir. En efecto, para definir un signo son suficientes el significante y el significado. Pero el signo puede tener también una referencia en la realidad, precisamente con un referente.


**Tablilla de Kish:
La tablilla de Kish se encuentra cubierta de escritura cuneiforme, y es considerada la muestra más antigua de esta escritura.[1] La escritura es puramente pictográfica, y representa a una etapa de transición entre la protoescritura y la emergencia de un silabario